Crianças e adolescentes das periferias, que possuem inúmeras necessidades não atendidas em função de políticas públicas frágeis, utilizam, muitas vezes, a agressividade como forma de reclamar reconhecimento e visibilidade da sociedade. Esta é a ideia defendida pelo frei Luciano Elias Bruxel, que encerrou, no dia 7/12, o Ciclo de Seminários “Justiça Restaurativa – uma nova perspectiva de Justiça” promovido pela Justiça Federal do RS (JFRS) ao longo do segundo semestre de 2017. Em sua fala, ele abordou a necessidade de fortalecer os vínculos comunitários e positivar a existência desses jovens como forma de ocupar um espaço em suas vidas para que não sejam conduzidos à criminalidade.
O palestrante é diretor do Centro de Promoção da Criança e do Adolescente São Francisco de Assis (CPCA) e presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente da Prefeitura de Porto Alegre. Desde 2007, participa dos projetos de Justiça Comunitária e na implementação das centrais comunitárias de Justiça Restaurativa na Lomba do Pinheiro e na vila Bom Jesus, bairros situados na capital gaúcha.
Exemplo bem-sucedido da proposta defendida pelo frei Luciano, a Orquestra Casa São Francisco, núcleo menor da Orquestra Villa-Lobos, participou da abertura do seminário. “A música nos fará melhor hoje”, anunciou o juiz federal Roberto Schaan Ferreira, líder do Projeto Estratégico Justiça Restaurativa da JFRS, ao apresentar os jovens músicos. “Nos dediquemos, exclusivamente agora, a ouvir, a sentir, a comungar dessa igualdade absoluta que a arte nos trás”, convidou o magistrado. Com um repertório que percorreu do clássico ao popular, o grupo tocou, entre outras músicas, a Primavera, de Vivaldi; Imagine, de John Lennon, e Anunciação, de Alceu Valença.
A orquestra é um projeto do CPCA que tem por objetivo garantir a inclusão social por meio do acesso ao conhecimento musical e à vivência artística, utilizando a música como meio de promover a autoestima, a inserção cultural e a cidadania. Entre as atividades oferecidas a crianças e adolescentes estão as oficinas de cavaquinho, contrabaixo, coral, flauta doce, gaita, musicalização infantil, piano, violino e violoncello.
Convivência familiar e comunitária
Com a temática “Intersetorialidade das Políticas Públicas e o Sistema de Justiça no Enfrentamento das Questões Sociais”, o palestrante iniciou sua fala pontuando que o trabalho da instituição surgiu em 1972, no auge do êxodo rural, quando os franciscanos tinham o entendimento de que a melhor forma de ajudar as pessoas que viviam em situação de pobreza era criar novamente um senso de comunidade. Segundo ele, essas pessoas passaram por um processo de desenraizamento social, perdendo suas referências e encontrando, nas cidades, um grupo estranho e um lugar com infra-estrutura precária. Nesse contexto, nasceu o Centro de Promoção da Criança e do Adolescente em 1979.
Frei Luciano afirmou que, desde o início, o CPCA procurou participar das discussões que envolvem a formação das políticas públicas na capital gaúcha, já que atua na execução dessas políticas em todos os níveis – básico, de média e também de alta complexidade. De acordo com ele, o direito à convivência familiar e comunitária e o fortalecimento desses vínculos são valores importantes, que articulam e norteiam a intervenção da instituição em todas as suas frentes de atuação, inclusive nos dois abrigos que administra.
Defendendo a universalização da educação infantil, ele comentou que muitas crianças e adolescentes das periferias crescem com um referencial de família pouco estruturada, que, somado à fragmentação e fragilização das instituições e comunidades, resulta em uma crise de reconhecimento da autoridade. “Se vocês forem passar uma semana na comunidade em que moro, vocês vão ver que as nossas crianças, com muitas necessidades materiais não atendidas, são felizes com muito pouco. Mas, ao mesmo tempo, há um prejuízo que elas carregam dentro de si”, contou. Conforme Frei Luciano, quando esses meninos e meninas ingressam no ensino fundamental e se deparam, pela primeira vez, com a autoridade sólida de um professor e uma estrutura de escola pública fraca, em contraponto aos muitos desejos que carregam, acontece um choque. “Na verdade, eles têm dificuldade em acolher as regras de convivência, razão pela qual logo serão estigmatizadas como problemáticas. Nessa repetição de olhar e percepção, elas crescem numa perspectiva existencial muito negativa”, pontuou.
Segundo ele, isso repercute no processo de aprendizagem, resultando, em muitos casos, em adolescentes com defasagem escolar. Cria-se, assim, uma situação propícia para que sejam absorvidos, cada vez mais cedo, pelo mundo do tráfico. “Nos últimos dias, tivemos dez óbitos na Lomba do Pinheiro. Para vocês perceberem como está forte hoje o crescimento dessas facções que disputam o tráfico, eu já vivi, dentro da comunidade, a sensação de estar na Faixa de Gaza, com tiroteio, rajadas de tiros e uma sensação de terror. Lá, na facção dos Balas na Cara, agora há um grupo sendo chamado de ‘balinhas’ porque são muito jovens”, relatou.
Para o franciscano, o aumento da violência nas periferias está associado ao sentimento de invisibilidade ou menos valia que muitas crianças e adolescente experimentam no seu percurso de crescimento, sendo também o resultado de muitas necessidades não atendidas em decorrência de políticas públicas frágeis. “O processo de envolvimento no ato infracional, no mundo do crime, é um fator de empoderamento existencial muito grande. Estamos lutando contra os toques de recolher porque cada toque é um empoderamento maior ainda para esse grupo”, ressaltou.
De acordo com ele, é preciso criar, dentro das políticas públicas, uma agenda para tornar positiva a existências dessas crianças e adolescentes. “Vivemos em uma sociedade que super estimula o desejo das pessoas. Muitas das necessidades hoje de reconhecimento são artificialmente produzidas pela sociedade. Atendemos jovens que têm a autoestima tão baixa que gastam todo o salário e mais um pouco para adquirir um tênis ou um celular, porque aquele item lhes confere uma certa dignidade, reconhecimento e valorização. Normalmente, adotamos um olhar moralizante, mas a menos valia desses jovens é tão grande que o tênis vai conferir a eles um sentimento de importância”, analisou.
Na sua visão, a criação de mecanismos comunitários de contato e valorização possibilita que alguns valores considerados importantes para esses jovens fiquem secundarizados. “Somente na convivência é que o ser humano experimenta o reconhecimento e a visibilidade”, sublinhou.
A adoção da cultura da paz na forma de lidar com esses jovens também contribui, segundo o frei, para mudar a maneira como eles lidam com suas problemáticas. “Sempre tivemos conflitos na sala da direção do Centro, pois há uma competitividade muito grande entre eles. À medida que fomos incorporando, dentro da cultura institucional, a perspectiva da Justiça Restaurativa e do reconhecimento e da visibilidade como valores importantes, percebemos como a violência diminui rapidamente. Conflitos são bem naturais, agora, a forma como os encaramos e percebemos muda a perspectiva”, destacou.
Esta percepção também foi partilhada na fala da coordenadora do Núcleo de Justiça Restaurativa do Centro, Fernanda Francisca. Ela contou um pouco da sua vivência nos círculos de paz realizados com os adolescentes, destacando os elementos importantes neste processo, como o respeito, a paciência e a capacidade de ouvir. “As pessoas buscam a paz como discurso, mas nem sempre como prática do dia a dia”, provocou.
Ciclo de Seminários
O ciclo de seminários “Justiça Restaurativa – uma nova perspectiva de Justiça” surgiu a partir da implantação, na JFRS, de um projeto construído sob uma perspectiva interinstitucional, sistêmica e interdisciplinar e com referência na Resolução 225/2016 do Conselho Nacional de Justiça. O principal objetivo da iniciativa foi incentivar a reflexão a respeito do contexto que perpassa os processos no âmbito penal, como a superlotação carcerária, o aumento crescente da criminalidade, a insatisfação com a Justiça e a fragilidade do senso comunitário. Como pano de fundo, esteve presente o entendimento de que cabe ao Poder Judiciário aprimorar permanentemente suas formas de resposta às questões sociais relacionadas aos conflitos com a lei e violência, resgatando sua capacidade de diálogo com a sociedade.
Ao longo do segundo semestre de 2017, foram realizados outros quatro seminários. As temáticas debatidas envolveram a problemática do cárcere e da ressocialização, a implantação da Justiça Restaurativa no Brasil e a resolução dos conflitos e dos danos, e a comunicação não-violenta.
Fonte: Justiça Federal do Rio Grande do Sul