Uma sociedade menos desigual é melhor para todos, diz professor Cattani

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Uma sociedade menos desigual é melhor para todos, diz professor Cattani

Cattani elegeu o tema da riqueza como um bastião para mostrar os desequilíbrios de renda no Brasil MARIANA CARLESSO/JC
Patrícia Comunello

Ao abrir seu último livro Ricos, podres de ricos com uma frase atribuída ao bilionário norte-americano Warren Buffett, o professor e doutor em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) Antonio David Cattani demarcou o terreno que queria percorrer. Buffett disse que “a luta de classes existe, mas é a minha classe, a classe rica que está fazendo a guerra, e nós estamos ganhando”.
Já Cattani elegeu o tema da riqueza como um bastião para mostrar os desequilíbrios de renda no Brasil. “Não é questão de Estado mínimo e nem de capitalismo de Estado, mas a ideia de Estado necessário vinculado ao bem-estar comum. Uma sociedade com menos desigualdades é melhor para todos”, diz Cattani, no prefácio do seu livro, que dois meses após ser lançado, em 2017, já estava esgotado.
Claro, a tiragem não é de best-seller, mas mostrou interesse das pessoas em conhecer mais sobre este mundo. Hoje está na segunda edição. “É a hora da vez desta questão”, aposta o professor, cujas ideias poderão ser conhecidas na próxima sexta-feira na Virada Sustentável.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Cattani destrincha os conceitos do seu livro, como da riqueza desmedida, e projeta propostas que possam equilibrar a balança de quem paga e quem não paga tributos no Brasil.
Jornal do Comércio – Quem são os ricos, podres de ricos, título do seu livro?
Antonio David Cattani – São uma minoria, não me interessa identificá-los pessoalmente. Interessa dizer que são uma parcela ínfima da população. Calcula-se que representam 0,01% dos brasileiros, e têm uma riqueza que chamo desmedida porque vai além da compreensão, porque atenta contra o bem comum, que seria ter uma economia equilibrada, com oportunidades de emprego, retribuições ao talento empresarial e capacidade de inovação, o real empreendedorismo. Essa riqueza na qual nem o Estado tem controle, é nefasta para todo o País. As pessoas não têm ideia do que é receber mensalmente sem impostos milhões de reais, ano após ano. Os ricos vêm se apropriando de maneira indecente da riqueza e, consequentemente, como não existem mundos paralelos – riqueza e pobreza -, precisamos pensar que esta riqueza está sendo transferida de parte da classe média, de trabalhadores e de pequenos e médios empresários para as mãos de uma minoria ínfima.
JC – Por que existe esta desproporção no Brasil?
Cattani – A desproporção existe e vem crescendo no mundo todo, e particularmente no Brasil por uma série de razões históricas. Ou seja, os ricos foram suficientemente espertos para criar uma máquina tributária que penaliza os mais pobres e beneficia e cria privilégios a quem tem mais. Mas, sobretudo e acho que é esta questão que merece atenção – e é o que tento abordar no meu livro -, a população acredita que a riqueza é sempre meritória, que é resultado de esforços e que, bom, quem não é rico é porque não trabalha, não teve ou perdeu oportunidades. As grandes fortunas não são inocentes. Foram, isto sim, criadas por décadas, transmitidas por herança e, em muitos casos, são fruto de expedientes que só são acessíveis aos poderosos. Os muito ricos, as grandes corporações são as primeiras a desrespeitar as regras da concorrência no livre mercado. Criam estratagemas para obterem benefícios em momentos de depressão, recessão e de retomada do crescimento. Isso tanto em momentos políticos democráticos ou autoritários. Raramente as grandes fortunas desaparecem, podem não existir mais as pessoas ou os herdeiros, mas a fatia de 0,01% permanece.
JC – O senhor acredita que tende a aumentar este grupo?
Cattani – Vai aumentar o número de ricos e o volume das fortunas. Um estudo insuspeito do Credit Suisse, uma das principais instituições bancárias da Suíça, mostra que, até 2022, haverá um crescimento de 8% no número de multimilionários brasileiros e também de suas riquezas, consequentemente, haverá um aumento das pessoas pobres e da quebra de pequenas empresas, pois as grandes corporações se desenvolvem, em parte, destruindo concorrentes.
JC – O livro já está na segunda edição, meses depois de ser lançado. O que explica esse interesse neste momento?
Cattani – As pessoas não se interessavam porque não tinham nem noção das imensas injustiças tributárias. Há uma mitificação e mistificação em torno da riqueza, e cheguei a abordar esta questão no meu livro A riqueza desmistificada, mais voltado à academia. O novo livro é para o contribuinte, o pequeno empresário, o sindicalista, que são pessoas interessadas no tema, mas que recebem informações falsificadas ou deturpadas em relação à distribuição de renda e carga tributária. Há uma espécie de mentira repetida diariamente sobre o peso dos tributos no Brasil, de que é muito alto e de que as pessoas passam meses pagando. Nesta época de entrega da declaração do Imposto de Renda começam a surgir estas notícias, que trata de uma mentira deslavada. O Brasil não tem carga tributária muito alta, está na 20ª posição entre os países de maior expressão econômica. A relação entre impostos e PIB (Produto Interno Bruto) é de 32%, inferior a dos Estados Unidos.
JC – Quem propaga a tese costuma dizer que o governo arrecada muito e entrega pouco.
Cattani – Isso é relativizar a pauta, pois a questão principal é que quem recebe até dois salários-mínimos paga tributo sobre tudo – energia, gás, gasolina, celular, alimentos. Não tem escolha. Já quem recebe até 30 salários-mínimos é tributado em apenas um terço da renda. A população pobre e trabalhadora fica pagando 197 dias de impostos, que pegam o informal. Isto é uma imensa injustiça.
JC – Quem sai favorecido por esta informação “deturpada”?
Cattani – Interessa a grandes corporações. A revista The Economist mostrou, no fim de 2017, que há uma diferença entre a carga tributária real sobre as corporações no Brasil e a que elas pagam, tudo porque há subsídios, elisão fiscal. Os seja, quem pode, devido à capacidade contribuitiva, não paga ou recolhe muito menos. A isenção de Imposto de Renda para pessoa física nos juros sobre capital próprio e dividendos, aprovada em 1996 no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB, 1995-2002), é de bilhões de reais por ano não recolhidos. É uma aberração tributária que só existe no Brasil e na Estônia. Essa isenção faz com que 0,01% dos mais ricos paguem muitíssimo menos imposto, na proporção da sua renda, que os demais cidadãos de classe média e, sobretudo, assalariados. Estudos técnicos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e do próprio Banco Mundial recomendam uma alteração urgente nessa anomalia tributária.
JC – A pessoa que chega a R$ 1 milhão ou a empresa que ultrapassa faturamento de R$ 1 bilhão são enaltecidas como exemplo de sucesso.
Cattani – O que se diz normalmente é que o rico mereceu. Só que isso foi forjado, esta mistificação. Se formos ver a trajetória de uma série de multimilionários vamos ver que não é bem assim. Eles não tiveram tanto êxito por competência. A JBS, por exemplo, comprou um monte de abatedouros e frigoríficos e comprou não porque era mais eficiente, mas porque teve capacidade de monopolizar determinados setores, que, depois de certo patamar, virou ineficiência e abandonaram. O que acaba tornando a economia vulnerável. A política de Estado do governo (Luiz Inácio) Lula (da Silva, PT, 2003-2010) de criar grandes players nacionais para atuar no mercado exterior foi muito complicada. A partir de certo momento ninguém mais tem controle, e estes empresários podem se valer de subterfúgios fiscais para aumentar seus lucros, independentemente de sua qualidade empresarial.
JC – O senhor critica a academia por estudar pouco a riqueza. Por que o tema não gera mais pesquisas?
Cattani – Não existem mais de 10 ou 12 pesquisadores no País que trabalhem com pesquisa sobre concentração de renda, mas existem milhares de sociólogos, economistas, antropólogos e formuladores de políticas públicas que realmente se preocupam legitimamente com os pobres, como se o polo pobreza fosse diferente do polo riqueza. Temos aqui o que chamo de poder, pois a riqueza é inibidora. Há um acomodamento da academia sobre a riqueza. É legítimo estudar a pobreza, mas o mundo da riqueza parece blindado. Seus componentes só revelam o que lhes interessa, como o lado glamouroso ou como marketing na hora de falar da caridade. Há inibição e uma espécie de temor em relação ao assunto.
JC – O francês Thomas Piketty advertiu para os desequilíbrios de renda no Brasil. Isso ajuda nesta formação que o senhor propõe?
Cattani – O Piketty tem muita legitimidade, tem parceiros em diversos países e tem uma base de dados que é muito séria e confiável. Para minha alegria, escrevi antes dele sobre o que ele falou da riqueza concentrada. E para meu alívio, acabamos convergindo sobre privilégios tributários que beneficiam minorias e as desvantagens fiscais que prejudicam a maioria das pessoas, de assalariados a pequenos e médios empresários. Piketty diz que as pessoas não têm noção. É isso, falta informação, e, se as pessoas soubessem, ficariam revoltadas. Por isso, surgem iniciativas como o Instituto Justiça Fiscal. A ideia é mostrar a realidade, não é um grupo partidário, até porque nenhum partido assume esta pauta.
JC – Pois é, os governos do PT não agiram ou tentaram. Por quê?
Cattani – Porque o setor bancário e todo o segmento financeiro são poderosíssimos. E não é só aqui. O governo de Donald Trump, nos EUA, fez mudanças, contrárias ao que prometeu na campanha, e reduziu a tributação dos que ganham mais. A explicação convencional é que concentrando a riqueza depois se distribui. Este pensamento é recorrente na teoria econômica.
JC – Deveria se distribuir riqueza ou se amenizar a concentração?
Cattani – O Instituto Justiça Fiscal defende que o primeiro passo é equalizar os tributos, e os ricos têm de pagar a conta. Hoje quem paga é quem não pode, como os mais pobres e pequenos empresários. Não precisa reforma constitucional, mas pequenas mudanças no sistema tributário, como o fim da isenção de juros e dividendos sobre capitais. Outra medida seria aumentar o imposto sobre herança, que no Rio Grande do Sul é de, no máximo, 8%. Este é um tributo estadual. Precisa criar uma zona de isenção ou taxação simbólica para heranças até R$ 1 milhão. E é preciso combater a sonegação! Com a Operação Lava Jato, chegou-se a R$ 20 bilhões em corrupção. O Sindicato dos Auditores Federais (Sindifisco) fala que a sonegação soma R$ 400 bilhões, sendo que 70% seriam das grandes corporações, que já têm uma rentabilidade muito alta.
JC – Este é um tema que pode entrar na campanha eleitoral?
Cattani – Acho que nem o PSOL pautaria. Taxar ou não as grandes fortunas, por exemplo, é um tema controverso no mundo todo e desvia o foco, que deve estar nos mais ricos que podem pagar. Todo mundo é a favor de saúde, educação, mas onde estão as receitas para isso? Também seria difícil que as pessoas votassem, pois falta esta compreensão de quem poderia pagar não paga. Por isso, é importante trabalhar com a educação tributária. Na segunda edição de Ricos, podres de ricos, proponho que não é questão de Estado mínimo e nem de capitalismo de Estado – com controles e estatizações -, mas a ideia de Estado necessário vinculado ao bem-estar comum. Uma sociedade com menos desigualdades é melhor para todos.
JC – O senhor vai abordar a pobreza e redução de desequilíbrios na Virada Sustentável. O que isto tem a ver com a riqueza concentrada?
Cattani – Diferentemente da parábola bíblica, na realidade, não existe a multiplicação de pães e peixes a partir do nada. Se a riqueza está concentrada nas mãos de poucos, isto significa que muitos perderam ou não estão ganhando o suficiente. A “trickle down effect” – metáfora indicando que os recursos concentrados no topo da pirâmide social caem para a base – é uma falácia. Quanto mais concentrada a riqueza, maior é o processo de produção de pobreza.
JC – Por que muitos dos que se elegem com o discurso de reduzir diferenças acabam atraídos pela riqueza?
Cattani – A corrupção é uma prática criminosa que precisa ser erradicada da política e da economia. Entretanto, ela está sendo usada como uma cortina de fumaça para escamotear os verdadeiros problemas. O Brasil está na 77ª posição no ranking de corrupção e no segundo lugar de sonegação. Toda a corrupção envolvendo agentes públicos e empresas não chega a 5% do montante das fraudes corporativas, evasão de divisas e sonegação das grandes corporações.

Perfil

Antonio David Cattani tem 66 anos, nasceu em Garibaldi, na serra gaúcha. Graduado em Economia, doutor pela Université de Paris I – Panthéon-Sorbonne, em 1980, é atualmente professor titular de Sociologia no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). Foi professor visitante na Université Laval (Québec – Canadá) e na University of Oxford (Inglaterra) entre 2010 e 2011. Em 2007, Cattani teve duas distinções – ganhou o Prêmio Fapergs 2007 como Pesquisador destaque em Ciências Humanas e Sociais, e também venceu o Açorianos de Literatura, na categoria Ensaios de Humanidades. Tem livros publicados no Brasil, Argentina, Colômbia, França, Itália, México, Portugal e Reino Unido. Dois deles abordam a renda concentrada – A riqueza desmistificada, de 2012, e Ricos, podres de ricos, de 2017, que já está na segunda edição. É vice-diretor do Instituto Justiça Fiscal e coordenador do site www.dmtemdebate.com.br.

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